Casinhas acolchoadas e uma grande árvore baobá esculpida em madeira, típica do continente africano, embaixo da qual, tradicionalmente, os mestres griôs sentam para contar histórias. Estes elementos se destacam na ambientação da Biblioteca Maria Firmina dos Reis, que fica em Cidade Tiradentes, na capital paulista, uma região marcada pela luta histórica por habitação – abriga o maior complexo de conjuntos da América Latina, beirando a 40 mil unidades – e é composta por uma população predominantemente negra e nordestina.
Foi mantendo a decoração simbólica que, no dia 29 de junho, a biblioteca comemorou mais uma conquista para a comunidade, com a inauguração de um acervo acessível de livros em Braille e em fonte ampliada para pessoas com deficiência visual. O material foi doado pela Fundação Dorina Nowill para Cegos, que enviou uma representante da Rede de Leitura Inclusiva e um de seus comunicadores ao evento.
Parte do público beneficiado pelo acervo frequenta o Centro Especializado em Reabilitação (CER, II Guaianases) – que atende pessoas com deficiência visual e auditiva – e constituiu a maioria dos participantes da inauguração. Também foram eles os organizadores de um Sarau Acessível para a ocasião, que incluiu a leitura em Braille e a declamação de poemas, bem como apresentações de dança e música ao som da Escaleta de dona Iolanda, com modas típicas do folclore nordestino, como a clássica Asa Branca. Durante todo o espetáculo e mesmo no bate-papo que se seguiu, era palpável a alegria e o contentamento daquela gente com histórias tão adversas, de luta e superação.
Histórias como a de José Nascimento, o Seu Zeca, que a todo instante vibrava e aplaudia os presentes com grande entusiasmo. Seu Zeca possui deficiência auditiva parcial e, no dia do evento, esqueceu de levar o aparelho auditivo, o que não o impediu de acompanhar as apresentações e falas dos outros convidados. Há 10 anos, ele migrou do nordeste para a capital paulista junto da irmã, que possui deficiência visual, em busca de melhores condições de vida. “A união faz a força!”, reafirmou durante sua fala no bate-papo, referindo-se à troca de conhecimentos entre os frequentadores do CER. “Quem sabe o Braille ajuda a ensinar quem ainda não sabe, e o mesmo vale para outras atividades, como o crochê e a música”, explica Seu Zeca.
Para a coordenadora da Biblioteca, Charlene Lemos, o evento representa um passo fundamental para um espaço público de acesso à informação e à cultura. “Nosso objetivo é atender a todos os públicos. Sabemos que ainda existem desafios pela frente, mas, com a inauguração desse acervo, começamos a suprir uma importante demanda local”. Charlene cresceu nas imediações do espaço e relembra que, em 2017, recebeu pela primeira vez uma visita dos alunos do CER. “Iniciamos um programa de cultura quinzenal com o grupo, mas não tínhamos livros com acessibilidade. Foi então que entrei em contato com a Fundação Dorina e expus a situação para a Rede de Leitura Inclusiva. É gratificante presenciar o resultado dessa parceria!”, afirma Charlene.
Juntos pela inclusão
Para um aprendizado em equipe, os frequentadores do CER contam com suportes como o da fisioterapeuta Aretuza Farias Leao. Em 2005, Aretuza teve o seu primeiro contato com pessoas com deficiência visual ao trabalhar na companhia de bailarinas cegas da professora Fernanda Bianchini. A partir dessa experiência, participou também de um curso de Orientação e Mobilidade, que visa a locomoção autônoma da pessoa com deficiência visual, e, em 2015, recebeu um convite para integrar a equipe do CER.
“Além da Orientação e Mobilidade, trabalho com eles a socialização por meio da dança”, conta a fisioterapeuta. Durante as aulas, ela relata que os alunos a apresentaram ao sistema Braille e perguntaram se ela não gostaria de aprendê-lo. “O CER tem um acervo de livros e cartilhas de saúde, mas todos estão em tinta. Percebi que, se aprendesse o Braille, poderia ajudar a transcrever esse material para um formato acessível”. Com esse objetivo em mente, professora e alunos planejam montar um grupo de capacitação em Braille.
“Só tenho obtido ganhos com essa experiência, seja como ser humano, aprendendo a lidar com sentimentos e expectativas, ou como profissional, ampliando meus conhecimentos e percepção corporal”, afirma a professora.