Quando eu, Lucas Borba, fui convidado a participar de uma mesa da 4ª Festa Literária de Cidade Tiradentes (FLICT), na capital paulista, realizada em 28 de outubro, fiquei honrado. Afinal, além do reconhecimento implícito no convite, falar um pouco do meu trabalho como youtuber no canal Câmera Cega, voltado ao cinema e à cultura pop sob a perspectiva de um jornalista com deficiência visual, foi uma grande oportunidade não apenas de acompanhar pessoalmente uma ação articulada em parceria com a Rede de Leitura – tanto como correspondente da Fundação Dorina quanto como produtor independente de conteúdo -, mas também de compartilhar ideias e experiências com o público e com meus colegas de mesa.
Mais do que isso, porém, ao final do encontro senti-me desafiado a ir ainda além. Sim, porque é fascinante como as palavras “acessibilidade” e “inclusão” trazem na prática um novo desafio quando menos se espera, inclusive expondo que o sujeito a ser incluído também deve saber incluir – ou, pelo menos, buscar como fazê-lo. Desafio que ressurgiu a mim personificado em uma de minhas colegas de mesa, a quadrinista com deficiência auditiva Juliana Loyola, mais conhecida como Ju Loyola. Ela trabalha com o que chama de “narrativas silenciosas”, já que não possuem uma única palavra. As histórias são contadas única e exclusivamente com o poder das imagens, das expressões faciais e gestos dos personagens. Nem sempre foi assim, no entanto.
Juliana nasceu com deficiência auditiva devido à rubéola da mãe na gravidez. A limitação auditiva, entretanto, só foi descoberta quando ela tinha três anos de idade. A paixão por quadrinhos e mangás surgiu ainda na infância, com clássicos que iam de Turma da Mônica a Mandrake e Fantasma. Quando a busca profissional bateu à porta, tentou direcionar seu talento com os traços para o desenho de próteses dentárias, mas ao interagir com alguns quadrinistas teve certeza do que tinha nascido para fazer. Por ser o que se chama de “surda oralizada”, que aprendeu a se comunicar por leitura labial – embora também o faça na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) -, Juliana começou esboçando quadrinhos com balões de diálogo, mas se deparou com o complexo universo de conjugações verbais da língua portuguesa, bem diferente da estrutura mais simples de frases em LIBRAS. Foi então que ocorreu à autora não apenas trabalhar com seu mundo silencioso, mas ampliar ainda mais o público que poderia ler suas obras, com uma forma de expressão que perpassa idiomas e culturas. O trabalho de Juliana já acumula prêmios importantes a nível internacional e sua meta é ser publicada em uma editora japonesa.
O desafio ao qual me referi no começo deste artigo surgiu de repente, enquanto minha colega e eu falávamos de nossos trabalhos e respondíamos às eventuais perguntas do público – ela apoiada por Nathali, sua irmã e intérprete. Ocorreu-me que, embora nós dois presidíssemos a uma mesa acerca da produção cultural e artística por pessoas que buscam a inclusão cotidianamente, nem o trabalho dela era acessível a mim, nem o meu a ela, já que o canal faz uso de podcasts – ou seja, não há imagem, apenas áudio.
Ser incluído e saber incluir. Foi quando desafiei a mim próprio diante de Juliana e do público, prometendo que, assim que possível, encontraria um jeito de manter a proposta do canal, porém de modo a contemplar também o público com deficiência auditiva. Da mesma forma, Juliana afirmou que está estudando como viabilizar versões acessíveis do seu trabalho a pessoas cegas e com baixa visão.
Educar para incluir
Enquanto a mesa “A pessoa com deficiência e o universo dos quadrinhos” compôs a programação matutina da FLICT, à tarde aconteceu a oficina “Leitura inclusiva”, promovida pela Rede de Leitura em parceria com a Biblioteca Temática em Direitos Humanos Maria Firmina dos Reis, que sediou todo o evento em Cidade Tiradentes. A oficina foi aberta a educadores, bibliotecários, mediadores de leitura e à comunidade em geral.
Inicialmente, houve uma sensibilização que propôs a interação do público com materiais ligados à leitura acessível e à autonomia da pessoa com deficiência visual, como um audiolivro ou um assinador – régua vazada que auxilia a assinatura da pessoa cega entre duas bases de apoio. O público vidente era convidado a vendar os olhos antes de interagir com esses materiais por meio do tato ou da audição. Posteriormente, teve início um debate sobre a promoção da leitura inclusiva em diferentes espaços.
Vania Ferreira atua na biblioteca Maria Firmina dos Reis desde a sua inauguração em 2013 e esteve presente à oficina. Sua paixão por educar vem da infância. “Eu sempre queria brincar de escolinha e ser a professora.”, lembra ela. Ao concluir o Ensino Médio, iniciou um curso técnico voltado para a educação no ambiente hospitalar, mas acabou se encontrando no meio cultural durante a graduação pela União das Instituições Educacionais de São Paulo (UNIESP). Em 2013, Vania iniciava um estágio na biblioteca e, em 2015, mesmo ano em que o espaço foi reinaugurado, assumia como pedagoga.
Para a educadora, a experiência da oficina dialoga plenamente com o prazer de seu atual posto. “Quando se fala em educar, as pessoas logo pensam no ambiente escolar. Claro que uma escola não existe sem educação, mas o aprendizado se aplica aos mais diversos espaços e contextos e essa oficina é a prova disso.”, afirma Vania.